A obrigatoriedade do exame criminológico voltou a ser pauta central no cenário jurídico brasileiro com a aprovação da Lei 14.843/2024, reacendendo debates sobre sua eficiência e pertinência. Este artigo explora a evolução do instrumento no contexto brasileiro, suas implicações normativas e os desafios práticos de sua implementação, especialmente considerando o contexto punitivista e a superlotação carcerária.
A discussão parte da contextualização histórica do exame criminológico, passando por sua relação com as ciências humanas e pelo impacto das reformas legislativas recentes. Por fim, propõe uma reflexão sobre alternativas que assegurem um equilíbrio entre segurança pública e os direitos fundamentais dos apenados.
O exame criminológico foi consolidado no Brasil com a Reforma Penal de 1984, que buscou orientar a individualização da pena a partir da análise da personalidade e dos antecedentes do apenado. Segundo Carvalho e Weigert (2024), o objetivo inicial do exame era avaliar o grau de ressocialização e possibilitar um prognóstico sobre o comportamento do condenado em liberdade.
No entanto, a adoção crescente de discursos punitivistas nas décadas seguintes contribuiu para que o exame assumisse uma função predominantemente contenciosa, privilegiando a neutralização de indivíduos considerados perigosos (Feeley; Simon, 1995). A Lei 10.792/2003 chegou a eliminar a obrigatoriedade do exame, mas juízes continuaram a requisitá-lo com frequência, conforme apontam Reishoffer e Bicalho (2017).
Diversos autores destacam inconsistências científicas e práticas relacionadas ao exame criminológico. Primeiramente, a sua base psicológica tem sido amplamente questionada por não apresentar instrumentos padronizados ou validados cientificamente para prever a periculosidade futura (Reishoffer; Bicalho, 2017). Ademais, estudos indicam que a aplicação indiscriminada do exame prolonga indevidamente o encarceramento e reforça estigmas contra os apenados (Carvalho; Weigert, 2024).
A Lei 14.843/2024, ao reinstaurar a obrigatoriedade do exame para progressão de regime e saídas temporárias, exacerba esses problemas. Criminalistas apontam a incapacidade do Estado em realizar exames de forma eficaz e imparcial, considerando a superlotação carcerária e os recursos escassos (Consultor Jurídico, 2024).
A participação de psicólogos na elaboração dos laudos criminológicos também é alvo de críticas. Reishoffer e Bicalho (2017) questionam o alinhamento da prática às diretrizes ético-políticas da profissão, sugerindo que os psicólogos acabam reforçando dinâmicas carcerárias opressivas. Esses autores destacam que os laudos frequentemente perpetuam preconceitos e avaliações subjetivas, distantes de um compromisso com a justiça social e a reabilitação dos apenados. Propostas de reformulação incluem a utilização de métodos mais objetivos e transparentes, além de maior capacitação dos profissionais envolvidos.
Ouso a propor que uma alternativa ao modelo atual seria a adoção de avaliações baseadas em indicadores objetivos de comportamento carcerário, aliados a programas de ressocialização mais efetivos. Ademais, é essencial que as decisões sobre progressão de regime sejam fundamentadas em critérios consistentes e auditáveis, respeitando os direitos fundamentais dos apenados. Investimentos em educação, capacitação profissional e acompanhamento psicológico regular também podem reduzir os índices de reincidência e promover uma reintegração social mais eficaz.
Portanto, o exame criminológico, conforme instituído pela Lei 14.843/2024, apresenta limitações significativas enquanto instrumento de avaliação penal. Além de questionável em termos científicos, sua obrigatoriedade contribui para perpetuar um sistema carcerário punitivista e ineficaz. É urgente repensar a execução penal brasileira, adotando políticas que conciliem a segurança pública com o respeito aos direitos humanos. Reformular o papel do exame criminológico pode ser um passo importante para a construção de um sistema penal mais justo e eficiente.
Referências:
CARVALHO, Salo de; WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Sobre a compulsoriedade do exame criminológico para concessão de progressão de regime e saída temporária. Revista da Faculdade de Direito, v. 48, n. 2, 2024. DOI: 10.5216/rfd.v48.73183.
CONSULTOR JURÍDICO. Exame criminológico é inviável e dificulta progressão, dizem criminalistas. Disponível em: Exame criminológico é inviável e dificulta progressão, dizem criminalistas. Acesso em: 3 jan. 2025.
REISHOFFER, Jefferson Cruz; BICALHO, Pedro Paulo Gastalho de. Exame criminológico e psicologia: crise e manutenção da disciplina carcerária. Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 1, p. 34-44, 2017. DOI: 10.22409/1984-0292/v29i1/1430.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1997.