O reconhecimento pessoal é uma das provas mais utilizadas no sistema penal brasileiro. No entanto, sua confiabilidade tem sido amplamente questionada devido à sua suscetibilidade a falhas, distorções de memória e influência de preconceitos raciais e socioeconômicos. A negligência no cumprimento das diretrizes do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) e a ausência de práticas cientificamente validadas no reconhecimento de suspeitos tornam o sistema vulnerável a erros judiciais.
Este artigo analisa as fragilidades epistêmicas do reconhecimento pessoal, os avanços jurisprudenciais e propõe reformas institucionais para mitigar os problemas identificados. A confiabilidade dos mecanismos de reconhecimento pessoal no âmbito do sistema penal tem sido tema de intenso debate. Estudos e jurisprudências recentes demonstram que falhas neste procedimento são não apenas comuns, mas frequentemente responsáveis por erros judiciários com consequências devastadoras para os indivíduos afetados e para a credibilidade do sistema de justiça como um todo.
Conforme exposto por Stein e Noronha (2015), a memória humana é inerentemente suscetível a distorções e vieses, especialmente em situações de estresse, baixa luminosidade ou exposição limitada a detalhes, fatores comumente presentes em cenas de crimes. Apesar disso, a prática judiciária brasileira frequentemente confere peso decisivo ao reconhecimento pessoal, mesmo quando realizado de forma inadequada ou em desacordo com as diretrizes legais.
Pesquisas como a de Leite e Bahia (2023) evidenciam que estereótipos e injustiças epistêmicas influenciam significativamente o valor atribuído ao reconhecimento de suspeitos. Esses fatores perpetuam preconceitos raciais e socioeconômicos que, embora muitas vezes implícitos, moldam decisões judiciais de maneira prejudicial e injusta. Estudos internacionais, como os conduzidos por Loftus (2003), também demonstram que fatores psicológicos, como sugestões ou influência do ambiente, podem comprometer a precisão dos testemunhos oculares.
Além disso, um relatório do Innocence Project Brasil (2023) apontou que cerca de 75% dos casos de erro judicial envolvendo condenações injustas tinham como base principal o reconhecimento equivocado de suspeitos, muitas vezes marcado por vieses inconscientes e procedimentos inadequados.
O Código de Processo Penal brasileiro, em seu artigo 226, estabelece diretrizes claras para a realização do reconhecimento pessoal, exigindo descrições prévias fornecidas pela vítima ou testemunha e alinhamentos justos com indivíduos de características semelhantes ao suspeito. Contudo, a negligência sistemática em observar essas normas tem sido amplamente documentada.
Em 2020, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que a inobservância das regras do art. 226 invalida a prova. Já em 2024, a Quinta Turma do STJ reforçou esse entendimento, decidindo que, para ser válido, o procedimento de reconhecimento de pessoas deve garantir alguma semelhança física entre o suspeito e os demais indivíduos alinhados. Nesse caso, um homem negro foi absolvido após ter sido reconhecido em um procedimento falho, no qual foi colocado ao lado de dois homens brancos, configurando violação ao CPP.
Esses avanços são promissores, mas, conforme argumentado por Cruz (2022), o impacto prático dessas decisões depende de mudanças culturais e procedimentais abrangentes entre os operadores do sistema de justiça, incluindo policiais, promotores e juízes.
Os erros judiciais relacionados ao reconhecimento pessoal refletem uma interseção complexa entre fatores epistemológicos e institucionais. A persistência em utilizar provas reconhecidamente falhas compromete tanto a busca pela verdade quanto a legitimidade do sistema de justiça. Conforme Fricker e Lackey (2007), a injustiça epistêmica não se limita ao contexto jurídico, mas nele encontra um terreno fértil para desigualdades, especialmente quando as vítimas são membros de grupos vulneráveis.
Ademais, a literatura sugere que o treinamento de operadores do direito é essencial para mitigar preconceitos e maximizar a precisão dos procedimentos. Práticas como o “double-blind lineup” (reconhecimento cego duplo), em que o condutor do procedimento não sabe quem é o suspeito, e a gravação em vídeo do reconhecimento são medidas recomendadas para aumentar a transparência e a confiabilidade.
A persistência de erros judiciários no Brasil, particularmente os decorrentes de falhas no reconhecimento pessoal, evidencia uma urgente necessidade de revisão crítica e reformulação do sistema penal. Essa transformação exige uma abordagem interdisciplinar que una os avanços científicos, a aplicação rigorosa dos direitos fundamentais e a sensibilização dos operadores do direito para os perigos inerentes aos preconceitos implícitos.
Somente com uma mudança cultural e institucional será possível caminhar em direção a uma justiça verdadeiramente justa e igualitária, que respeite os princípios constitucionais e os direitos humanos.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 598.886. Pacientes: Vânio da Silva Gazola e Igor Tartari Felácio. Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz. Brasília, 27 out. 2020. Disponível em: GetInteiroTeorDoAcordao. Acesso em: 5 jan. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Reconhecimento criminal exige que suspeito seja posto ao lado de pessoas parecidas. Brasília, 10 maio 2024. Disponível em: Reconhecimento de suspeito exige semelhança física. Acesso em: 5 jan. 2025.
CRUZ, Rogério Schietti. Investigação criminal, reconhecimento de pessoas e erros judiciais: considerações em torno da nova jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 567-600, 2022.
FRICKER, Miranda; LACKEY, Jennifer. The epistemic injustice: power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press, 2007. INNOCENCE PROJECT BRASIL. Relatório Anual. São Paulo, 2023. Disponível em: Relatório Anual – 2023 (versão final). Acesso em: 5 jan. 2025.
LEITE, Sara Ribas Ortigosa; BAHIA, Cláudio José Amaral. O erro judiciário e a injustiça epistêmica no reconhecimento de pessoas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 9, n. 2, p. 1003-1034, 2023.
LOFTUS, Elizabeth. Eyewitness testimony. Cambridge: Harvard University Press, 2003.
STEIN, Lilian; NORONHA, Gustavo. Avanços científicos em Psicologia do Testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça, 2015.